UM COMÍCIO POLÍTICO
EM 1960
Prólogo:
Figurantes:
Apresentante,
Regedor,
Candidato a Deputado,
Zé Povinho e Zé Póvinhas.
Fala o apresentador:
De teatro uma peça
Vou tentar apresentar.
Mas que ninguém a meça
Pois por métrica não sei pensar !
O que vos vou relatar
Numa praia perto do Porto
Acabou por se passar.
Um regedor atrapalhado
Quase dava em morto,
Por barco não ver varado
Onde pudesse … evacuar !
Facto relatado nos jornais
P’ra quem quisesse ler.
Era uma oportunidade
Que não se podia perder !
Aproveitar tal história,
Sem incómodo da Censura,
Logo me passou p’la memória.
A ideia surgiu com pressura
Rapo do lápis e escrevo
Um artigo de chalaça.
E pela Censura passa,
E eu a tremer de medo !
No dia anterior !
Fala o regedor :
Minha gente, amanhã,
Vamos fazer um comício
Ao qual ninguém faltará
Senão vai parar ao hospício !
Uma mulher do povo:
Mas “seu” regedor, p’ra que é
Q’a gente tem de vir ?
Se não puzer cá o pé,
Onde é que eu vou cair ?
O regedor:
Já lhe disse e ordenei;
Mas quem não for
Ao comício que planeei,
Terá que se haver com dor !
A mulher:
Mas “seu” regedor
Eu cá não sou política
Nem m’interessa o governador
Q’o senhor nos indica !
O regedor:
Cale-se, sua besta !
Faça o que lhe ordenar.
Ponha merenda na cesta
P’ró deputado petiscar !
A mulher :
Então política é comer
À custa de todo o povo ?
Ora vá lá se …morder,
Q’o seu cantar não é novo !
O regedor:
Pois então estas noites,
Já sabe onde dormirá !
A Pide lhe dará açoites,
E o mais q’adiante verá !
A mulher:
Triste vida é a nossa
De ter de os “agantar”.
“Inda” quer que não possa
Estar contente, sem piar !
O apresentante:
À noite lá foi a gancho
A mulher tão refilona.
Não comeu só rancho,
Comeu também “tapona” !
O regedor “bota faladura”
Montemos o cenário,.
Voltemos ao tempo, Tomaz
O regedor Zé Canário
Sabe bem o que faz !
O apresentante:
No dia do comício
Estava o terreiro cheio !
Montaram um edifício,
P’ra se falar sem receio !
Mesa p’r’ós oradores
Botarem figura do fino,
Nem os afligirem os ardores
Do Sol mesmo a pino !
Uma praça cheia de gente,
Todinha a abarrotar.
O regedor está presente,
Vai principiar a falar !
O regedor:
Fala para o deputado
Imponente todo inchado :
Como vê, caro deputado,
Quem manda aqui sou eu !
Tomei conta do recado
Q’o senhor ontem me deu!
O deputado:
Em confidência para o regedor
Que se mostrava tão falador:
Assim é que é. Traze-los
Bem presos às ideias ;
Caso contrário é prende-los
P’ra lhes acabar c’o as peneiras !
O apresentante:
Tudo a postos, vai começar a sessão.
E cada um tratará da sua função.
Fala ;
Primeiro o deputado,
Até aí muito calado :
Vou apresentar um programa
Em que todos votarão !
Pois de trás, traz fama,
Pois é a “Bem da Nação”
Um programa de concórdia
Que é o da “Acção Popular”;
Não é o da discórdia
P’ra que nos querem levar !
Á parte, em surdina:
A ferro e fogo, se preciso,
P’ra saber quem manda !
Salazar é nosso amigo,
Faz-nos encher a “pança” !
Voltando-se para o Zé Povinho:
Não tendes alternativa,
Já vos disse o regedor.
Se quereis boa vida,
Salazar é nosso senhor !
Ele é quem manda !
Vós como gentes portuguesas,
Deveis defender-nos na dança
Duma “eleição sem surpresas” !
O Zé Povinho, à parte :
Olha que esta é boa !
A gente tem que votar
Em quem, lá de Lisboa,
Nos interessa governar ?
Se eles tem tanto interesse,
Teremos que desconfiar,
Pois é grande a messe,
E o que querem é “mamar” !
O regedor, pensando :
Raio, nunca mais acaba
Este gajo de falar,
E no íntimo pensava,
As ameixas “tavam por madurar” !
Pois a barriga às voltas,
Lhe fazia recordar
Q’as tripas andavam soltas,
E o que queria era… despejar !
Fala o apresentante:
E o deputado falava, falava,
E o programa apresentava ;
E o regedor suava, suava ;
E a barriga apertava, apertava !
Por fim o deputado,
Acabou c’o palavriado.
E o regedor, coitado
De tanto sofrer, entalado
Principiou o seu discurso;
Rapa do papel.
E suando como um urso
Começou o aranzel !
O regedor :
Meus amigos, vou
A c’o a pressa com que estou,
Apresentar o programa
Q’a nossa terra reclama !
Como sabeis ao votar
No partido “Nacional”
Podeis contar
C’o melhor q’á em Portugal !
Digo-vos que com o programa
Que vos vou apresentar,
Todos terão cama,
Boa ou má p’ra se deitar 1
Fome e sede não passarão !
Cama, mesa e roupa lavada,
Mesmo q’uma levada,
Vos carregue p’ra prisão !
Que melhor situação
Querem vocês, seus palermas ?
Votem com a “Nação”,
Não tereis problemas !
Á parte :
Mas se não quiseres votar,
Cá estou à vossa espera.
“Pedreiros livres”, nem pensar,
Ideia que não entra na terra !
De novo voltado para o Zé povinho :
Podeis estar tranquilos,
C’os homens que vão mandar.
São todos nossos amigos,
Ás ordens de Salazar !
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Voz do apresentante :
De repente, em grandes ais
Corre até à penedia,
E ali se alivia,
Pois não podia mais !
E por onde passou
A sofrer co’a a dor,
Um perfume deixou
Que diziam ser fedor !
Aqui acaba a história
Do comício naquela vilória,
Q’ali p’rós lados do Porto,
Ia dando c’o regedor morto !
Acabada a função
Vamos nos despedir.
Adeus, até então,
Só quisemos fazer rir !
Braga, 1960
VISADO PELA COMISSÃO DE CENSURA
Agora!!!... não foi.
(distribuído secretamente aos amigos do REVIRALHO )