O ENTRUDO NA PÓVOA
HÁ MAIS DE SETENTA ANOS
Quem se lembrará do Entrudo na Póvoa há mais de setenta anos ? Certamente qualquer velho rabugento como eu se lembrará, com saudade, desses tempos da nossa mocidade que, como diz a canção “… vão e não voltam mais!”, dias fugazes de folgança que antecedem o período Quaresmal, em que, contrastando com ele, a mocidade se ia espraiando numa alegria esfusiante aproveitando para esquecer, momentaneamente, os tempos que sempre e vindo de longe, eram de apertos e sacrifícios, apanágio da raça de heróis que “…que deu mundos novos ao mundo…”.
Nesses três dias, um outro bailarico. Naqueles de mais posses, o costume da diversão estava nos chamados “assaltos” , não no verdadeiro sentido da palavra, de provocar qualquer dano, mas sim levar a “folgança”, às casas onde, se possível, tivessem a estadia “meninas casadoiras”, já que àqueles arrumados pelos laços do matrimónio, os “assaltos”, serviam apenas para desapertar os “cordões à bolsa”, e preparar a recepção aos assaltantes que, por vezes transportavam e levavam algumas “munições” comestíveis, mas a mor parte das vezes eram os que aguentavam com a despesa, o que faziam de bom grado os assaltados, pois, quem sabe, era meio caminho andado para descontar a “letra” que tinham em carteira – algumas já um pouco quase fora do prazo. Esses serões eram animados por uma grafonola, que ia lançando, pela enorme campânula, as modinhas em uso – os tangos argentinos, as valsas, as marchinhas, o mexido “fox”, a voz de Menano, e outras modas que tais. Ainda vinha longe a era da rádio ou televisão e para o indispensável bailarico, os discos, alguns já riscados e roufenhos pelo uso desmedido, eram a solução pois as modernas “barulhentas bandas de hoje”, nem sonhos eram.
Mas também para os “assaltados” essa diversão servia para recordar tempos idos “os tais que não voltam mais”. E para mim estou a recordar um que, apesar de muito miúdo jamais esqueci e que foi à casa de uma senhora brasileira, cuja residência era ali nos princípios da rua Almirante Reis, a Dona Joaquina Osório, conhecida entre os folgazões por Dona Joaquina Urraca e a quem queriam atribuir uma paixoneta pelo elegante Tenente Malheiro.
Mas o Carnaval na rua era o que mais dava nas vistas. Tinha por palco a velha Junqueira. Ainda não tinha sido proibido o uso das máscaras feitas de massa de papelão. Desde São Roque até ao “ferro engomar” – conjunto de edificações que ao longo dos anos limitam a nossa principal via comercial e por diversas vezes tem estado nos planos camarários para ser derrubado – um mar de gente dava azo à sua folia e quem ganhava com o negócio era o estabelecimento do Baldomero, casa especializada na venda de artigos carnavalescos, desde as horríveis e assustadoras “carantonas”, às bisnagas de perfume - mais tarde proibida a sua venda pelo uso indevido de éter -, aos pozinhos das comichões, aos engarrafados fedorentos, às serpentinas, ao confetti, aos pozinhos de espirrar.
E a festa de rua só terminava ao escurecer. Depois a festa, no domingo gordo bem como a tradicional terça-feira, passava à noite, para o velho Garrett onde os galãs na plateia lançavam para as frisas e camarotes, os rolos de serpentinas, e eram correspondidos, muitas vezes, pelas elegantes meninas pela remessa de rebuçados, embrulhados em vistosos papeis coloridos que escondiam, em vez de açúcar, um amargoroso paladar.
Uma, que outra vez, a empresa da velha casa de espectáculos, levantava parte da primeira plateia, para os pares bailarem e se divertirem. Houve um ano em que se propôs organizar um concurso entre as jovens meninas com vestidos inteiramente confeccionados com papel e os prémios eram atribuídos pelo publico assistente. O primeiro prémio, nesse dia de folia, foi então uma linda boneca de porcelana. Durante muitos anos essa boneca adornou a travesseira da cama da minha saudosa irmã.
Para findar estas minhas recordações e para as amaciar um pouco, vou dizer que nesses já tão longínquos dias de Carnaval, ao domingo, no Garrett, havia, como de resto durante todo o ano “matinée”, mas no Domingo Gordo, domingo de Carnaval a minha tia Maria, só nos deixava ir ao cinema depois de uma hora de adoração e desagravo ao Senhor na Matriz, pois dizia ela que nesses dias Jesus sofria muito pelos pecados que a humanidade fazia e com a nossa adoração e desagravo os perdoava. E nós um tanto contrafeitos achávamos essa hora interminável.
Braga, Fevereiro Carnaval de 2006.
LUIS COSTA
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